PALESTRA – VULNERABILIDADE E AUTONOMIA NA VISÃO DO DIREITO

1- BIOÉTICA
Bioética, que etimologicamente significa “ética da vida”, é formada por dois vocábulos gregos: “bios” – vida e “ética” – costumes; tendo por objetivo a busca de benefícios, da garantia da integridade do ser humano; em outras palavras, é uma disciplina que busca mais humanismo nas ciências biológicas, nas práticas médicas e nas experimentações científicas, que utilizem seres humanos.
Esta palavra começou a se popularizar em janeiro de 1971, com a publicação do livro “Bioética: Ponte Para o Futuro”, do biólogo Van Rensselaer Potter, da Universidade de Wisconsin – EUA, num sentido macro, com conotação ecológica e holística; já o obstetra holandês da Universidade de Georgetown – EUA, Andre Hellegers, foi o primeiro a usar o termo aplicado à Medicina ou Biologia, ao fundar, em julho de 1971, o Instituto Bioético de Reprodução Humana; enfatizando que os temas mais constantes são as manipulações genéticas e os direitos reprodutivos.

Destarte, a Bioética deve ser compreendida como ética que se relaciona às intervenções sobre a vida, a saúde humana e a integridade física e psíquica das pessoas. Com efeito, a Bioética não é apenas uma nova versão da ética médica tradicional, pois não trata apenas de problemas deontológicos decorrentes das relações entre médicos e pacientes, mas como leciona Volney Garrafa, de situações persistentes ( aborto, transplantes de órgãos, eutanásia, …) e de situações emergentes (terapia gênica, clonagem, transgênicos, células-tronco…), decorrentes do progresso biotecnológico(GARRAFA,2006,p.12):

Outrossim, pode-se entender a Bioética como : “o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e do cuidado da saúde, quando esta conduta se examina à luz dos valores e dos princípios morais” (Enciclopédia da Bioética, 1978).

2- BIODIREITO
Na definição objetiva do Dicionário Enciclopédico de Teoria e de Sociologia do Direito (1999); “Biodireito é o ramo do Direito que trata da teoria, da legislação e da jurisprudência relativas às normas reguladoras da conduta humana face aos avanços da biologia, biotecnologia e da medicina”.
A nossa Constituição Federal, já estabelece, desde 1988, em seu artigo 225, § 1º, incisos II e V, importantes normas que podem ser compreendidas como fundamentos do biodireito:
Art.225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:…
II – preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
V – controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substância que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.
Estas normas demonstram que os avanços das pesquisas genéticas têm enorme repercussão no tecido social, reclamando uma rápida adequação do Direito aos novos desafios trazidos pela biomedicina, levando ao surgimento do “Biodireito”, que, na conceituação de Maria Helena Diniz, seria uma nova disciplina (DINIZ,2002,p.8):Estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade. A esfera do Biodireito compreende o caminhar sobre tênue limite entre o respeito às liberdades individuais e a coibição de abusos contra o indivíduo ou contra a espécie humana.
Assim, pode-se entender o Biodireito como um ramo do direito diferenciado, tendo como eixo central de todo o ordenamento proteger a vida presente e futura, além de garantir a dignidade da pessoa humana, prevista pela Constituição Federal ; devendo-se acolher o Biodireito , uma vez que a Bioética não pode impor as responsabilidades da prática biotecnológica, em razão de não dispor de força coercitiva, traduzindo-se apenas numa obrigação moral.

3-NEGÓCIO JURÍDICO E CAPACIDADE
Os Requisitos de Validade do Negócio Jurídico: Agente capaz, objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma prescrita ou não proibida em lei.
O pressuposto da vontade e sua importância no plano de validade dos contratos estabelecidos no âmbito da terapia médica, clínica ou experimental .
Código Civil – Lei 10.406/2002 , Artigo 3 : São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I- os menores de dezesseis anos;
II- os que , por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III- os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Artigo 4: São incapazes , relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I- os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II- os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que , por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III- os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV- os pródigos.
A distinção acima reside em se avaliar o grau de maturidade, discernimento e experiência de vida, caso estes elementos não sejam encontrados no sujeito, por inexistir entendimento impossibilitando sua autodeterminação está caracterizada sua incapacidade absoluta e nesta hipótese será ouvida a vontade do seu representante legal; mas se estes elementos forem encontrados com certa deficiência , a vontade do sujeito deverá ser considerada, todavia apoiada por um assistente.
A análise da incapacidade do art. 3, incisos II e III só é possível diante de um sujeito específico e de uma situação concreta, sendo necessária uma avaliação individual num processo judicial de interdição , onde o magistrado requisitará um laudo de perito de sua confiança e verificando-se sua falta total de entendimento, o juiz mediante sentença nomeará um curador para o incapaz, que a partir de então fará as escolhas da vida do interdito.

4-COMPATIBILIZAÇÃO DA AUTONOMIA COM A CAPACIDADE JURÍDICA

A autonomia vem do grego auto (próprio) e nomo (regra) , significando a possibilidade de agir em conformidade com a sua vontade, ou seja, é a capacidade de obter informações e tomar decisões congruentes com seu melhor interesse.

Vale salientar , que os famosos princípios bioéticos, que servem de referência, principalmente, para a área de saúde, foram elaborados por uma comissão americana, em 1978, o Informe Belmont , no qual definiram-se, três princípios bioéticos básicos: da autonomia das pessoas(cada indivíduo tem liberdade de agir conforme sua autodeterminação, desde que respeite os limites legais); da beneficência(fazer o bem maximizando os benefícios) e da justiça(valores que devem ser respeitados por toda a sociedade, exemplificando com a garantia de distribuição eqüitativa dos bens e serviços de saúde).

Por fim , saliente-se que Tom L. BEAUCHAMP e James F. CHILDRESS, em 1979, na obra “ Princípios da Ética Biomédica”, resolveram aditar um princípio, o da “não maleficência”, que seria, basicamente, não fazer mal a outra pessoa; sendo sua principal diferenciação do princípio da beneficência, que este envolve ações positivas, enquanto aquele envolve ações ou omissões negativas, ou seja; não impor dano intencional ao paciente.

Outrossim, definiram três modelos de decisões substitutas, quando os pacientes não têm autonomia para decidir, ou seja, quando o paciente não é capaz de escolher ou recusar um tratamento, um membro da família, seu medico ou até mesmo se pode recorrer a justiça para que seja implementada a melhor decisão para o caso( 2002,p.196-204):

O modelo da pura autonomia respeita escolhas autônomas anteriores. Ele se aplica exclusivamente a pacientes que já foram autônomos e que expressaram uma decisão autônoma ou preferência relevante…por um documento escrito deixado pelo paciente; por uma diretriz dada oralmente a um membro da família, a um amigo ou um profissional..
Exemplo 1: Caso Terri Schiavio, paciente estava em estado vegetativo e o reconhecimento a sua autonomia foi objeto de disputa judicial, pois o marido alegava que sua vontade manifestada anteriormente era no sentido de evitar o prosseguimento de tratamento paliativo sem chance de cura, ao passo que os pais defendiam a sua manutenção em estado de coma. A justiça autorizou a suspensão do funcionamento dos aparelhos .
Exemplo 2: Caso de inseminação artificial “post mortem”, quando da assinatura do contrato com a clínica de reprodução assistida os genitores eram capazes e autônomos, sua vontade foi expressa; entretanto caso o marido morra e a mulher faça a inseminação, sua autonomia já manifestada deverá ser respeitada, pois o artigo 1.597, III do Código Civil, estabelece a presunção de paternidade
O modelo do julgamento substituto parte da premissa de que as decisões sobre tratamentos pertencem propriamente ao paciente incapaz ou não-autônomo, em virtude dos direitos à autonomia e à privacidade…exige que um substituto legal tome a decisão que o incapaz tomaria…
Exemplo : os pais podem ser chamados para decidir pelo filho, por força do “poder familiar” disposto no artigo 1.634, V do Código Civil: “ Compete aos pais, quanto a pessoa dos filhos menores: representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem par, suprindo-lhes o consentimento.
O modelo dos melhores interesses protege o bem-estar da pessoa, avaliando os riscos e os benefícios dos vários tratamentos e das alternativas ao tratamento, levando em consideração a dor e o sofrimento e avaliando o restabelecimento e a perda de funções. É indispensável, portanto, um critério de qualidade de vida.
Exemplo: Caso o paciente esteja em risco de vida e não aceite receber transfusão de sangue, por ser Testemunha de Jeová e não deseje contrariar dogma de sua fé religiosa, nesta caso deve ser garantido o seu direito a vida, mesmo negando a autonomia do paciente, com base na Resolução 1.021/80 do CFM. O direito a vida prevalece diante da liberdade de credo religioso, em face da vulnerabilidade em que se encontra o titular do direito de decidir. Sendo este modelo adotado quando o Judiciário é chamado a intervir.

5- VULNERABILIDADE E DIREITO
A Resolução CNS número 196 de 1996, inciso II.15, define vulnerabilidade como “estado de pessoas ou grupos que, por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido”; exemplificando com as crianças, os adolescentes, portadores de doença mental …os doentes podem contrair graves patologias que os levem a vulnerabilidade médica, em face de esperança de cura que cesse seu sofrimento. O reconhecimento da vulnerabilidade humana que exige a adoção de condutas que protejam os homens de suas fragilidades e limitações, evitando de sofrer danos maiores.
Neste diapasão pode-se afirmar que a vulnerabilidade é o eixo estruturante da nova corrente Bioética Latino-Americana , também denominada de Bioética de Proteção, defendida por Fermin Schramm, Volnei Garrafa e Michel Kottow, que surge nos países sub-desenvolvidos num contexto de exclusão, escassez de recursos, concentração de poder e inacessibilidade ao desenvolvimento tecnológico, decorrente da colonização mercantilista portuguesa e espanhola.

Neste caso os vulneráveis são vítimas da globalização excludente e merecem políticas públicas estatais, em suas ações protetoras e compensatórias, além do auxílio das organizações civis, que possam equilibrar este desnivelamento social da população mais carente.
A vulnerabilidade foi o principal fundamento para o surgimento do Direito do Trabalho, com a elaboração de leis trabalhistas no início do século XX, que assegurassem uma mínima proteção aos trabalhadores. A vulnerabilidade também atende a exigência de vinculação ao Princípio Constitucional da Dignidade Humana(CRFB,art.1º, III, sendo sua proteção o paradigma dos Estados Democráticos de Direito.

Também pode-se encontrar a proteção a vulnerabilidade no Código de Defesa do Consumidor, no seu art.4, inciso I, ao reconhecer a vulnerabilidade de todo consumidor, visa defender seus interesses, como parte hipossuficiente no processo, ao enfrentar o poderio econômico.

Outros exemplos de proteção aos vulneráveis no Direito são o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Política de Proteção ao Idoso, as políticas públicas em prol dos deficientes físicos, quotas dos negros nas universidades,o Decreto 5.209/2004,instituiu o Bolsa Família, etc…

Pode-se concluir defendendo a elevação da VULNERABILIDADE a um princípio bioético-jurídico que obrigue e vincule, como uma norma fundante da sociedade brasileira, para garantir que a proteção e superação das fragilidades humanas, sejam uma busca evolutiva permanente e objetivo comum a ser buscado por toda a comunidade.

Sérgio Nogueira Reis
Presidente da Comissão de Bioética, Biotecnologia e Biodireito da OAB-BA
Diretor da Sociedade Brasileira de Bioética- Regional Bahia
E-mail- sergio@nogueirareis.com.br